ÉSTA É UMA REPORTAGEM DA PLAYBOY - "excelente" - enviada por "Jânio Francisco de Oliveira" de Marília - confira:

 

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Uma cela do Presídio Central de Porto Alegre guarda, há um ano, um raro, raríssimo, quase único caso no cenário de Justiça do país. Trata-se de um brasileiro que, não obstante não ser "preto, pobre ou prostituta" -- os três pês discriminatórios que superlotam os prontuários da polícia e as dependências das penitenciárias --, foi julgado, condenado e cumpre pena atrás das grades, apesar de ser um empresário, e dos grandes.

É o preso 105.197, condenado em primeira instância a catorze anos, cinco meses e dez dias de reclusão, em regime fechado, pelos crime de sonegação fiscal (36,4 milhões de reais) e evasão de divisas (3,5 milhões). Chama-se Ademar Kehrwald e é o milionário dono da Data Control Comércio e Serviços em Informática -- a empresa que até recentemente dominava o mercado nacional de cursos de informática, com setenta escolas e 80 000 alunos, estampando sua logomarca nas camisas dos times de futebol do Vasco da Gama e do São Paulo e no bólido do piloto de fórmula Indy Roberto Pupo Moreno.

Por Luiz Maklouf Carvalho
Esculturas: Hebert Cabrino

Fotos: Pedro Rubens

 

                    Copyright © 1999, Abril S.A.

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Ademar morava em uma cobertura de 1 600 metros quadrados de área privativa e exatos 2 228 de área total, com nove vagas na garagem, avaliada em 3,5 milhões de reais e tida hoje como o imóvel mais caro de Porto Alegre. Atualmente vive enfurnado num retângulo de minúsculos 2 metros de cumprimento por 1,5 de largura, o tamanho da cela 22 do Hospital Penitenciário, o anexo do presídio onde se internam os detentos doentes, entre eles aidéticos, paraplégicos e feridos a bala.

 

Ele é um preso comum ( por não ter curso superior) e trabalha todos os dias,s de segunda a domingo, ajudando a lavar e a passar as 250 peças diárias de roupa suja que o hospital produz. A lavagem é feita em máquinas industriais -- mas o resto é no braço, com ferro de engomar. Seu ajudante é o preso Alemãozinho -- um bem-tirado guapo de 20 anos, condenado por latrocínio. "O Ademar é bom de serviço", disse a PLAYBOY o capitão da Brigada Militar Altemir Silva de Lima, coordenador operacional do Hospital Penitenciário.

Da sala de Lima, nos fundos do hospital, pode-se assistir a algumas típicas cenas de prisão -- entre elas o desinibido banho de sol com que dois travestis condenados deliciam a galera presa no pavilhão mais próximo. Do banheiro da sala também dá para ver o local em que está Ademar. É na parte de baixo do pavilhão A (a de cima está desativada). Há grades nas paredes externas desse pavilhão, que tem uma única porta metálica que se abre para um microparque e para uma quadra de futebol de salão.

Lá dentro -- PLAYBOY foi conferir de perto -- distribuem-se os 23 presos-trabalhadores do hospital. As celas não são exatamente celas. São cubículos individuais com portas de madeira ou cortina de pano. Há colchonetes para dormir e alguns têm televisão e rádio. Entre as celas há um corredor para livre circulação, três banheiros coletivos, uma geladeira apelidada de "Rainha da Sucata"(digna do apelido), um pequeno tanque coberto de crostas, uma mesa-refeitório e uma cozinha. Tudo lúgubre, deteriorado e tosco, tanto quanto o vermelho do chão e o desbotado verde-e-branco das paredes.

Não se pode negar que é ruim -- principalmente para quem morava em um espaço 266 vezes maior --, mas é sem dúvida muito melhor do que estar nas celas superlotadas dos três pavilhões em funcionamento, as chamadas galerias, com seus 1518 presos, muitos perigosos, que compõem uma massa carcerária quase duas vezes superior à capacidade da penitenciária. O Presídio Central pode, tecnicamente, abrigar apenas 832 detentos.

"Pela posição social que ele ocupa, seria uma irresponsabilidade botá-lo nas galerias", diz o major da Brigada Militar Erotildes Rodrigues Collins, 49 anos, comandante da Força-Tarefa Operação Canarinho, a unidade especial que comanda as cinco maiores penitenciárias do Rio Grande do Sul. O lema do major é "nem privilégios nem discriminação". Se Ademar foi parar em cela individual, na companhia de poucos presos, o motivo, explica o major, foi ter-se mostrado capacitado e disposto a trabalhar duro (três dias de trabalho servem para descontar um dia da pena), além de ter passado nos testes internos de aptidão, incluindo o psicológico.

Se quiserem, os presos-trabalhadores do hospital podem fechar suas portas com cadeado. Foi o que Ademar fez com a cela 22 quando o repórter de PLAYBOY esteve lá. O empresário não quis falar à revista, mesmo sabendo que seria objeto desta reportagem. A porta de compensado, branca, estava trancada por fora. Além da identificação oficial do preso, em papel datilografado, tinha o adorno de uma bengalinha bicolor, um motivo natalino, certamente uma lembrança do pior Natal da vida de Ademar. Foram Natal e Ano-Novo com a ceia-bóia servida ao meio-dia da véspera ("Arranjamos uma carne melhorzinha", conta o capitão Lima), na presença de Verônica, sua segunda mulher, e do filho Ademarzinho, de 5 anos. Os dois e o filho Henri, 17, do primeiro casamento, são parte das poucas visitas que o empresário recebe nos dois dias de semana em que isso é possível.

Só podem visitá-lo, e aos demais presidiários, parentes de primeiro grau e advogados credenciados. Se a visita é íntima -- como pontualmente tem acontecido --, Verônica só entra no cubículo 22, com hora marcada, depois de passar por uma revista rigorosa. O uso do telefone da prisão é proibido, assim como o do celular.

"Não há nenhum tipo de mordomia", diz o capitão Lima. "O Ademar tem bom comportamento, está adaptado e faz questão de passar despercebido." Exemplo maior disso, segundo o oficial, é que não é o empresário o preso escolhido entre os 23 para ser o "plantão representante" -- aquele que encaminha as reivindicações dos demais ao próprio capitão. O "plantão representante" é Ivanil Gomes, condenado a vinte anos por latrocínio. "Ademar tem a nítida preocupação de não se mostrar superior", avalia Lima.

 

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O empresário foi preso por três agentes da Polícia Federal na tarde de 13 de março de 1998, quando despachava na sede da Data Control, no centro de Porto Alegre. A ordem de prisão preventiva foi expedida pela juíza Salise Monteiro Sanchotene, da 2ª Vara Criminal da Justiça Federal. Aceitando a denúncia dos procuradores da República Douglas Fischer, 29 anos, e Luiz Felipe Hoffmann Sanzi, 35 -- que acusavam Ademar por crimes de sonegação fiscal e evasão de divisas --, a juíza, 31 anos, decretou a prisão por entender que o empresário planejava fugir, o que "impossibilitaria o ressarcimento do enorme prejuízo causado aos cofres públicos". "Trata-se de uma personalidade voltada para o crime e o Uruguai, onde ele comprou fazendas, está apenas a 4 horas de Porto Alegre", disse a juíza a PLAYBOY, convicta da decisão que tomou.

O interessante é que a juíza já havia cruzado com o mesmo Ademar num processo anterior, quando o absolveu da denúncia de descaminho -- artigo 334 do Código Penal: "Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo da mercadoria". Na época, ele foi denunciado por vender computadores com documentação irregular a outra empresa.

"Absolvi porque as provas eram inconclusas", diz a juíza.

O empresário escapou dessa, mas não escapou de uma outra, pelo mesmo crime. Em 13 de dezembro de 1996, foi condenado a um ano e dois meses de reclusão, por sentença do juiz federal Narciso Leandro Xavier Baez. Dessa vez, a Data Control foi flagrada com equipamentos de informática importados sem a documentação legal.

Ademar ainda está recorrendo dessa condenação por descaminho -- e isso lhe dá a condição de réu primário no processo mais recente. Ou seja, poderia, mesmo condenado, ainda estar em liberdade. Mas o fato é que essa condenação anterior pesou consideravelmente no tamanho da pena mais recente. PLAYBOY apurou que Ademar também foi processado por crime eleitoral (abuso do poder econômico) em 1990, depois de ter sido no ano anterior candidato a deputado estadual pelo PRN (partido do então recém-empossado presidente Fernando Collor). Teve apenas 1052 votos -- 5000 a menos do que precisaria para se eleger. Apurou, ainda, que o empresário também responde a ações trabalhistas e executivas de cobrança judicial.

No mesmo dia 13 de março do ano passado, além da prisão, a juíza determinou o bloqueio das contas bancárias e o seqüestro dos bens móveis e imóveis conhecidos do réu -- um encorpado patrimônio de quatro apartamentos, três casas, um prédio de treze andares, duas fazendas, dez carros (entre eles os importados Audi, Mercedes, BMW, Mustang, Renault e Mitsubishi Pajero), onze tratores e uma colheitadeira.

Advogados de Ademar -- que valem um capítulo à parte, como aliás se verá -- pediram que a juíza revogasse a prisão. Ela a manteve. Impetraram habeas-corpus no Tribunal Regional Federal da 4ª Região -- a segunda instância para o caso -- e também perderam. Tentaram outra vez, em junho, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília -- e perderam de novo. Mas a grande ducha de água fria veio em 18 de agosto, com a sentença de 190 laudas do juiz federal substituto Ricardo Humberto Silva Borne.

Ele condenou o empresário a catorze anos e uns bons trocados; à multa de 12 000 salários mínimos (1,56 milhão de reais em valores da época); e à perda, em favor da União, de uma casa, seis fazendas no Uruguai, uma em São Gabriel (RS) e três apartamentos -- a magnífica cobertura entre eles. Na mesma sentença foi condenado o contador da Data Control, Roberto Genta, a cinco anos, seis meses e vinte dias de prisão, em regime semi-aberto, e à multa de cinqüenta salários mínimos. Genta foi autorizado a recorrer em liberdade.

Borne diz, na sentença caudalosa, que a personalidade de Ademar tem "acentuados traços de tendência à delinqüência, não a imprimida pelo sangue, senão que uma mais requintada, sofisticada, com aparência de sucesso e de licitude, mas eivada de falsidade e de egoísmo, marcada pela sede do lucro desmedido e a qualquer preço (...)".

O juiz entendeu que Ademar, "em manobras arquitetadas", fraudou a fiscalização tributária

 

com lançamentos fictícios de milhões de dólares na contabilidade da empresa. Entendeu, mais, que esses recursos -- que representavam entre 16% e 47% do total da receita -- foram desviados para a "explosão patrimonial" do empresário, sem a devida declaração à Receita Federal. Quanto ao crime de evasão de divisas, a sentença diz que Ademar "transpôs a fronteira Brasil-Uruguai no mínimo (grifado no original) em seis oportunidades distintas (...) munido de quantias em espécie muito superiores às permitidas legalmente".

Ademar completou 44 anos no mês de março. Nasceu pobre, em Pato Branco, no Paraná, terceiro filho dos oito que teve o casal de lavradores Gustavo e Minna Rosa Kehrwald, descendentes de imigrantes alemães. "A vida era dura, mas não chegamos a passar fome", contou a PLAYBOY Valdemar Kehrwald, o irmão mais velho do empresário, taxista e dono de lanchonete em Foz do Jordão (PR).

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Ademar estudava, ajudava na roça "e sempre queria ir em frente quando tinha umas idéias". Quis ser padre e por muitos anos estudou em seminários de Agudos (SP) e Luzerna (SC). Desistiu da batina quase conquistada em 1978 (aos 23 anos), quando o pai morreu. "Não sei o que deu nele", diz Valdemar. "Sei que tocou a vida, lutou muito e chegou aonde chegou."

Foi para Porto Alegre, casou-se, trabalhou em uma empresa de treinamento em informática -- e aí descobriu, no começo dos anos 80, o filão que o tornaria rico. A Data Control foi fundada em 1984, em Santana do Livramento, a 495 quilômetros de Porto Alegre, na fronteira com o Uruguai. Aos poucos, mas sempre indo com sede ao pote, Ademar foi comprando milhares de computadores pelo sistema de leasing. Rompia um contrato aqui, fazia um outro ali, e ia tocando. Em 1995 tinha cinqüenta filiais espalhadas pelo Brasil. Em 1998 elas já eram setenta, num total de 1000 funcionários e faturamento que beirava os 200 milhões de reais. Com um pesadíssimo investimento em mídia -- houve ano em que chegou a 2,5 milhões de reais --, contratou uma verdadeira constelação para fazer publicidade da empresa. Letícia Sabatella, Maurício Mattar, Raul Cortez, Victor Fasano, Natália do Vale, Juca de Oliveira, Angélica, Edson Celulari, Renata Sorrah, Fábio Assunção e o jogador Edmundo fizeram parte dessa lista, entre outros nomes.

 

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Chegou-se, ao final, entre impostos sonegados e multas aplicadas, ao total de 36, 4 milhões de reais. Numa tentativa de acordo, permitida pela legislação fiscal, Vilarinho fixou a multa de um exercício em 3 milhões reais, com parcelamento em noventa meses. Assim faria com os demais exercícios, mas Ademar, alegando inocência, não aceitou.

Em 28 de agosto de 1997 o auditor assinou a Representação Fiscal para Fins Penais, dando início ao Processo nº 11080.007.661/97-17. Com mais seis meses de trabalho, em que aprofundaram as investigações, os procuradores Sanzi e Fischer ofereceram a denúncia. Três dias depois veio a prisão, e em mais cinco meses a sentença -- tudo em tempo recorde para os padrões da Justiça brasileira.

"É assim que deveria ser, sempre", diz a juíza Sanchotene, também professora de Processo Penal da Escola Superior da Magistratura Federal, em Porto Alegre. Convencida do aspecto "pedagógico" desse caso, e dos de outros empresários que já mandou (e ainda vai mandar) para a cadeia, ela avalia que Ademar Kehrwald encarou todo o processo "com ar de pouco-caso, sem nunca acreditar que seria punido".

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